sábado, 29 de dezembro de 2012

Encarando a atividade egocêntrica que cria divisões

Toda a nossa vida... é uma luta constante. Desde que nascemos até que morremos, a nossa vida é um campo de batalha. E nos perguntamos, não abstratamente mas realmente, se essa luta poderá acabar, se será possível viver completamente em paz, não só interior como exteriormente. 

Embora de fato não haja divisão entre o interior e o exterior — na realidade o que há é um movimento — considera-se que essa divisão existe, não só quanto ao mundo dentro e fora da pele, mas também quanto à divisão entre “eu” e “tu”, “nós” e “eles”, o “amigo” e o “inimigo”, etc.

Traçamos um círculo à volta de nós próprios: um círculo em redor de “mim” e um círculo em redor de “ti”. Traçado o círculo — seja o do “eu” e do “tu”, seja da família, da nação, da fórmula, das crenças e dos dogmas religiosos, ou o círculo do conhecimento que se tece em redor de si mesmo — esses círculos separam-nos e existe assim esta constante divisão que invariavelmente produz conflito. Nunca passamos para lá do círculo, nunca olhamos para além dele. Temos medo de sair de nosso pequeno círculo e descobrir o círculo, a barreira à volta do outro. E penso que é aí que começa todo o processo, estrutura e natureza do medo. Ergue-se uma barreira em redor de si mesmo, encerrando um mundo privado cuidadosamente construído com fórmulas, conceitos, palavras e convicções. Então, vivendo dentro desses muros, fica-se com medo de sair para fora deles.

Esta divisão gera não só várias formas de comportamento neurótico, mas também muito conflito. E se porventura abandonamos um dos círculos, uma das barreiras, construímos outra, à volta de nós mesmo. Há assim esta constante e forte resistência feita de conceitos, e perguntamo-nos se é possível não ter nenhuma divisão: colocar fim a toda a divisão e desse modo eliminar todo o conflito.

As nossas mentes estão condicionadas por fórmulas: as minhas experiências, o meu conhecimento, a minha família, o meu país, o gostar e o não gostar, o antagonismo, o ciúme, a inveja, o sofrimento, o medo disto e o medo daquilo. Esse é o círculo, o muro por detrás do qual vivemos. E temos medo não só do que está do lado de dentro, mas muito mais do que está para lá do muro. Cada um, em si mesmo, pode observar este fato muito simplesmente, sem ter de ler muitos livros, sem ter que estudar filosofia, e tudo o mais. Pode muito bem ser que seja por se ler tanto do que outros têm dito que não se sabe nada acerca de si próprio, do que realmente se é, e do que de fato está se passando em si.

Se olhássemos para dentro de nós, colocando de lado o que pensamos que deveríamos ser, e vendo o que de fato somos, então, talvez descobríssemos a existência dessas fórmulas e conceitos — verdadeiros preconceitos e condicionamentos — que coloca o homem contra o homem. E assim, em todas as relações entre os homens, há medo e conflito — não só o conflito dos direitos territoriais, dos direitos sexuais, etc., mas também o conflito entre o que é e o que deveria ser.

Quando a pessoa observa esse fato em si própria — não como uma ideia, nem como uma coisa para que olha como estando de fora, mas olhando realmente para dentro de si — então pode descobrir se é de fato possível descondicionar a mente de todas as fórmulas e crenças, de todos os preconceitos e medos, e desse modo, talvez, viver em paz.

(...) Poderá o homem — vós e eu — viver completamente em paz — o que não significa levar uma existência monótona ou sem energia dinamizadora — poderemos nós descobrir se tal paz é possível? Tem de ser possível com certeza, de outro modo a nossa vida terá muito pouco sentido.

Por todo o mundo os intelectuais tentam encontrar um significado ou atribui um sentido à vida. As pessoas religiosas dizem que a existência é só um meio para atingir um fim, que é Deus — sendo Deus o verdadeiro significado. Se acontece de não se ser religioso, substitui-se então Deus pelo estado, ou inventa-se alguma outra teoria, nascida do desespero.

Assim, a nossa pesquisa consiste realmente em investigar se o homem pode viver em paz, de fato, não de maneira teórica, não como uma ideia, não como uma fórmula, de acordo com o qual se irá então viver pacificamente. Tais fórmulas, como dissemos, tornam-se muros — a minha fórmula e a tua fórmula, o meu conceito e o teu conceito — tendo como resultado divisão e constante batalha.

É possível viver sem fórmulas, sem divisão e portanto sem conflito? Não sei se alguma vez puseram a si mesmos esta pergunta, com toda a seriedade: se a mente poderá alguma vez ficar livre destas divisões do eu e do não-eu? Eu, a minha família, o meu país, o meu Deus; ou, se não tendo nenhum Deus, eu, a minha família, o Estado; e se não tenho Estado: eu, a minha família, e uma ideia, uma ideologia.

Será possível libertarmo-nos de tudo isso, não com o tempo, mas de um dia para o outro? Se aceitamos a teoria do eventual, não estamos a viver inteiramente: “eventualmente” seremos livres, ou “eventualmente” viveremos em paz. Isso, com toda a certeza, não serve: quando um homem tem fome, quer alimentar-se imediatamente. Qual é então o ato que libertará a mente de todo o condicionamento? O ato, não uma série de atos.

Reparemos na atividade egocêntrica que cria divisões: a atividade egocêntrica em redor de um princípio, de uma ideologia, de um país, de uma crença, em redor da família, etc. Essa atividade egocêntrica é separativa e portanto causa conflito. Ora, poderá esse movimento da fórmula — que é o “eu” com as suas memórias, o centro à volta do qual se constroem os muros — poderá esse “eu”, essa entidade separada com a sua atividade egocêntrica, terminar por completo, não por uma série de atos, mas por um só ato? Como sabem, tentamos eliminar os conflitos pouco a pouco, cortando a árvore em pequenos pedaços, sem nunca lhe atingirmos a raiz. Assim, pergunta-se se será de fato possível,  com um só ato, colocar fim a toda esta estrutura de divisão, colocar fim à separatividade, à atividade egocêntrica — todas elas geradoras de conflito, de guerra, de luta. Será possível?

(...) Portanto, supondo que se é suficientemente sério, qual é o nosso problema? Como viver a nossa vida aqui — não num mosteiro ou em algum mundo romântico de sonhos, não em algum mundo emocional, dogmático, regido pela droga — mas aqui e agora, todos os dias; como viver completamente em paz, com grande inteligência, sem qualquer frustração, sem medo: viver inteiramente, num estado de felicidade profunda — o que evidentemente implica meditação — este é na realidade o problema fundamental. E também se é possível compreender esta vida na sua totalidade: não em fragmentos, mas completamente — estar totalmente envolvido nela e não apenas empenhado numa parte; estar implicado no processo total de viver, sem conflito nenhum, sem angústia, sem confusão ou sofrimento. Este é o problema real. Porque só então se será capaz de criar um mundo diferente. É essa a verdadeira revolução, a revolução interior, psicológica, da qual nasce imediatamente uma revolução exterior.

(...) Vemos que estas divisões, estas fórmulas de “eu” e “não-eu”, “nós” e “eles”, por detrás das quais vivemos, originam medo. E se pudermos tomar consciência deste medo global, deste medo total, poderemos compreender estão qualquer medo particular. Ao passo que tentar compreender apenas um pequeno e limitado medo particular, embora muito ornamentado, não terá qualquer sentido até que se compreenda todo o problema do medo.

O medo destrói a liberdade. Podemos revoltar-nos, mas a liberdade não é isso. O medo perverte todo o pensamento, destrói toda a relação. Repare que não se trata só de palavras: é um fato evidente em toda a vida de cada um — existe medo do princípio ao fim. Medo da opinião pública, medo de não ser bem sucedido, medo da solidão, medo de não ser amado; e há ainda o comparar-nos a nós próprios com o herói do que “deveria ser”, originando assim mais medo. Além disso, o medo não reside apenas no nível observável da mente, estende-se também a zonas profundas. Queremos pois saber se este medo poderá acabar — não de modo gradual, não por partes, mas completamente.

Que é então este medo? Por que é que se tem medo? Será por causa do que está para lá do círculo, ou dentro do círculo — ou será por causa do próprio círculo? Compreendem o que queremos dizer? Não estamos a tentar descobrir a causa particular deste medo, porque, como ontem dissemos, a descoberta da causa, o processo analítico da compreensão da causa e efeito, não acaba necessariamente com o medo — tem-se jogado nisso há muito tempo. Mas quando se vê este medo — como se vê este microfone, o que ele realmente é — será que ele existe dentro do muro, ou do outro lado do muro, ou existe exatamente por causa do muro? Certamente que existe por causa do muro. Existe factualmente tal como é, quando o observamos, por causa do próprio muro. Como é então que surge o muro?

(...) Como é que surge então este muro de resistência, de divisão e de separação? Em tudo o que fazemos, em todas as nossas relações, por muito intimas que sejam, há essa divisão, a criar confusão, sofrimento e conflito. Como é que aparece esta barreira? Se somos realmente capazes de compreender isto — não verbalmente, não intelectualmente, mas capazes de vê-lo e de senti-lo de fato descobriremos que a barreira deixa então de existir.

(...) O muro surge por certo através do mecanismo do pensamento. Não? Antes de se pronunciarem, observem apenas, observem o pensamento. Se não houvesse pensamento acerca da morte, não se teria medo dela. Se não fossemos educados para sermos Cristãos, católicos, Protestantes, Hindus, Budistas ou sabe Deus que mais, se não estivéssemos condicionados pela propaganda, pelas palavras, pelo pensamento, não teríamos barreira alguma. E podemos ver de que maneira o pensamento, como “eu” e “tu”, origina isso. Com as suas atividades egocêntricas, o pensamento cria não só o muro, mas também a nossa própria atividade dentro do nosso muro.

É pois o pensamento, ao produzir divisão, que cria o medo. Pensamento é medo, tal como pensamento é prazer. Ontem vi algo muito belo: um belo rosto, um pôr de Sol maravilhoso, ou então aconteceu algo agradável; o pensamento pensa nisso: “como foi bom”. Observem isto, por favor: “que experiência tão agradável”, e o pensamento, pelo próprio ato de pensar, dá a essa experiência uma continuidade de prazer. Deste modo, o pensamento é o responsável não só pelo medo, mas também pelo prazer. Isto é bem claro, evidentemente: porque esta tarde se gostou de uma determinada refeição, quer-se que esse prazer se repita; ou teve-se uma experiência sexual, e o pensamento pensa nela, rumina-a, mastiga-a repetidamente, cria o quadro, a imagem, e quer tê-la outra vez. É a esse prazer repetido que chamam amor. E o pensamento, tendo criado o círculo, a barreira, a resistência, a crença, tem medo de que isso seja destruído, ao deixar entrar alguma coisa além do muro.

Assim, o pensamento gera tanto o prazer como o medo. Não se pode ter o prazer sem o medo; ambos andam juntos, porque são filhos do pensamento. E o pensamento é o filho estéril de uma mente que apenas se preocupa com o prazer e com o medo. Observem isto, por favor. Deixem-me lembrar-lhes outra vez que estamos a fazer a viagem juntos: estão a examinar-se, a observar-se a si mesmos no espelho das palavras.

Medo, sofrimento e prazer são assim resultado do pensamento. E todavia, o pensamento tem de funcionar logicamente, com sensatez de maneira sadia e objetiva, sempre que esse funcionamento é necessário, no mundo tecnológico — não na relação humana, porque no momento em que o pensamento ser intromete nesta relação há medo; então há nisso prazer e sofrimento. Não estou a dizer nenhuma insensatez: vós próprios podeis constatá-lo. O pensamento é a resposta da memória, da experiência e do conhecimento, e por isso é sempre velho e nunca é livre. Certamente que há “liberdade de pensamento”: ou seja, liberdade para dizer o que se quer. Mas o pensamento, em si, nunca é livre e nunca pode criar liberdade. O pensamento pode perpetuar quer o medo quer o prazer, mas não a liberdade. E onde há medo e prazer, o amor deixa de estar. O amor não é nem pensamento nem prazer. Mas para nós o amor é prazer e, portanto, medo.

Quando se toma consciência de toda esta questão da vida tal como é — não como gostaríamos que fosse, nem de acordo com algum filósofo ou algum sacerdote consagrado, mas como ela realmente é — pergunta-se se o pensamento pode ter o seu lugar adequado, e todavia não ter qualquer interferência em todo o relacionamento. Isto não significa uma divisão entre os dois estados de pensamento e não-pensamento. Como sabem, tem de se viver neste mundo, é preciso ganhar a vida, infelizmente, e ir para o emprego. Se alguma vez se conseguir que haja um governo capaz para o mundo inteiro, talvez então, não precisemos de trabalhar mais do que um dia por semana, deixando o resto aos computadores, o que nos permitirá ter tempo disponível. Mas enquanto isso não acontece, tem de se ganhar a vida, e ganha-la de maneira completa e eficiente. Contudo, no momento em que essa eficiência fica deformada, por exemplo pela avidez ou pelo terrível desejo de sucesso, e de ser “alguém”, surge a barreira do “eu” e do “não-eu” a originar competição e conflito.

Ao compreendermos tudo isto, como poderemos então viver com dignidade, com uma eficiência que não seja desumana, e ainda em completa relação, não só com a natureza, mas também com outro ser humano, uma relação em que não haja sombra do “eu” e do “tu” — essa barreira criada pelo pensamento?

Quando se compreende realmente tudo isto — não verbalmente mas de fato — o próprio ver, ver realmente, é o ato que destrói o muro da separação. Quando se vê o perigo de alguma coisa — um precipício, um animal perigoso, etc. — há ação. Pode bem ser que essa seja resultado de um condicionamento, mas não é um ato de medo: é um ato de inteligência.

Do mesmo modo, ver inteligentemente toda esta estrutura, a natureza desta divisão, o conflito, a luta, o sofrimento, o egocentrismo — ver realmente o seu perigo, significa o seu fim. E não há “como”. Assim, o que é importante é fazer a viagem por dentro de tudo isso — sem ser conduzido por outrem, porque não há guia — e ver o mundo tal como é: a extrema confusão, o infindável sofrimento do homem, vê-lo realmente. Então, o ver toda essa estrutura é o findar disso. 

Krishnamurti — extratos da conferência na Universidade de Stanford

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sensibilidade


Era um lindo jardim, com gramados em vários níveis e velhas arvores frondosas. A casa era grande, com cômodos espaçosos, arejada e bem dividida. As arvores abrigavam muitos passarinhos e esquilos, e vinham pássaros de todos os tamanhos à fonte, às vezes águias, mas principalmente corvos, pardais e barulhentos papagaios. A casa e o jardim eram isolados, ainda mais que estavam cercados por altos muros brancos. Era agradável do lado de dentro desses muros, e do outro lado havia o barulho da estrada da aldeia. A estrada passava pelos portões e a alguns metros dela situava-se a aldeia, nos arredores de uma grande cidade. A aldeia era suja, com valões abertos ao longo da estreita rua principal. As casas tinham teto de sapê, os degraus da entrada estavam enfeitados e crianças brincavam na rua. Alguns tecelões esticaram longos cordões de fios de cores alegres para fazer tecidos, e um grupo de crianças os observava trabalhar. Era uma cena alegre, animada, barulhenta e repleta de odores. Os aldeões tinham acabado de se lavar e usavam pouca roupa, pois o clima era quente. Ao cair da noite alguns deles ficaram bêbados e tornaram-se vulgares e grosseiros.

Era apenas um muro estreito que separava o lindo jardim da agitada aldeia. Rejeitar a feiúra e agarrar-se à beleza é ser insensível. Cultivar o oposto sempre estreita a mente e tolhe o coração. A virtude não é um oposto; e se tiver um oposto, deixa de ser virtude. Perceber a beleza daquela aldeia é ser sensível ao jardim verde e florido. Queremos estar atento somente à beleza e nos desligamos daquilo que não é belo. Essa repressão simplesmente dá origem à insensibilidade, pois ela não realiza a apreciação da beleza. O bom não está no jardim, longe da aldeia, mas na sensibilidade que se encontra além de ambos. Rejeitar ou se identificar leva à imitação, que é ser insensível. A sensibilidade não é uma coisa para ser cuidadosamente nutrida pela mente, que só consegue dividir e dominar. Existe o bem e o mal; mas buscar um e evitar o outro não levar aquela sensibilidade que é essencial para a existência da realidade.

A realidade não é o oposto da ilusão, do falso, e se você tentar abordá-la como um oposto, ela jamais tomará forma.  A realidade só pode ser quando os opostos cessam. Condenar ou se identificar gera o conflito dos opostos, e conflito só produz mais conflito. Um fato abordado não-emocionalmente, sem rejeição ou justificação, não causa conflito. O fato em si mesmo não tem oposto; ele só tem um oposto quando existe uma atitude prazerosa ou defensiva. É essa atitude que constrói os muros da insensibilidade e destrói a ação. Se preferirmos permanecer no jardim, existirá uma resistência à aldeia; e onde há resistência  não pode haver ação, tanto no jardim quanto em relação à aldeia. Pode haver atividade, mas não ação. A atividade é baseada em uma idéia e a ação não o é. As idéias têm opostos e a movimentação entre os opostos é simples atividade, por mais prolongada ou modificada que seja. A atividade jamais pode ser libertadora. 

A atividade tem um passado e um futuro, mas a ação não tem. A ação está sempre no presente, e é portanto imediata. A reforma é atividade, não ação, e o que é reformado precisa de mais reforma. A reforma é inação, uma atividade nascida como um oposto. A ação é de momento para momento e, por estranho que pareça, ela não tem contradição inerente; mas a atividade, embora possa dar impressão de não ter intervalos, está cheia de contradições. A atividade da revolução é decifrada com contradições e, portanto, jamais pode libertar. Conflitos e escolhas jamais podem ser um fator libertador. Se há escolha, existe atividade e não ação; pois a escolha está baseada na idéia. A mente pode entregar-se a atividades, mas ela não pode agir. A ação surge de uma fonte bastante diferente.

A lua surgiu sobre a aldeia, criando sombras no jardim.


Krishnamurti – Comentários sobre o viver


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A liberdade do medo é mais importante que qualquer diploma acadêmico


Não é extremamente importante, enquanto somos jovens, sermos amados e também sabermos o que significa amar? Mas tenho a impressão que a maioria de nós não ama e nem é amado. E acho que é essencial, enquanto somos jovens, entrarmos nesse problema de forma muito séria e entende-lo; pois aí talvez possamos ser bastante sensíveis para sentirmos amor, para reconhecermos sua qualidade, seu perfume, para que quando ficarmos mais velhos isso não seja inteiramente destruído. Então, vamos considerar essa questão.

O que significa amar? Isso é um ideal, algo distante, inatingível? Ou o amor pode ser sentido por cada um de nós em momentos esporádicos do dia? Ter a capacidade da compaixão, do entendimento, de ajudar alguém naturalmente, sem qualquer motivo, de ser espontaneamente bondoso, de cuidar de uma planta ou de um cão, de ser solidário com o aldeão, generoso com seu amigo, com seu vizinho — não é isso que queremos dizer por amor? O amor não é um estado em que não existe sentimento de ressentimento e sim de uma benevolência permanente? E não é possível, enquanto somos jovens, sentirmos isso?

Enquanto somos jovens, muitos de nós experimentam esse sentimento — uma súbita compaixão cordial pelo aldeão, por um cachorro, por aqueles que são pequenos ou indefesos. E isso não deveria ser constantemente assim? Vocês não deveriam sempre dedicar parte do dia para ajudar os outros, para cuidar de uma árvore ou jardim, para ajudar na casa, para que, quando chegarem à maturidade, saibam o que significa ser naturalmente atencioso, sem imposição, sem motivação? Vocês não deveriam ter essa capacidade de afeição verdadeira?

A afeição verdadeira não deve ser induzida a existir artificialmente, vocês têm que senti-la; e seus tutores, seus pais, seus professores também precisam senti-la. A maioria não tem afeição verdadeira; está preocupada demais com suas realizações, seus anseios, seu conhecimento, seu sucesso. Eles dão importância tão colossal ao que fizeram  e ao que querem fazer que isso no fim acaba os destruindo.

Por isso é muito importante, enquanto vocês são jovens, que ajudem a cuidar de seus quartos, de árvores que vocês mesmos tenham plantado, ou prestar ajuda a algum amigo doente, para que haja um sutil sentimento de solidariedade, de preocupação, de generosidade — a generosidade verdadeira, a que não é somente da mente e que faz com que vocês queiram compartilhar com alguém o que quer que vocês tenham, por menor que isso seja. Se vocês não tiverem esse sentimento de amor, de generosidade, de bondade, de cortesia, enquanto forem jovens, será muito difícil de tê-lo quando forem mais velhos; mas se vocês começarem a sentir isso agora, então talvez consigam despertar isso em outras pessoas.

Ser solidário e ter afeição implica a libertação do medo, não é? Mas vejam, é muito difícil crescer neste mundo sem medo. As pessoas mais velhas nunca pensaram sobre esse problema do medo, ou só pensaram nisso de forma abstrata, sem ação prática na existência diária. Vocês ainda são muito jovens, estão observando, indagando, aprendendo, mas se não virem e entenderem o que causa o medo, se tornarão iguais a eles. Como uma erva daninha escondida, o medo crescerá, se espalhará e deformará suas mentes. Vocês devem, portanto, estar conscientes de tudo o que está acontecendo em torno de vocês e dentro de si mesmos — como os professores falam, como seus pais se comportam e como vocês reagem — para que essa questão do medo seja percebida e entendida.

A maioria das pessoas adultas pensa que ter algum tipo de disciplina é necessário. Vocês sabem o que é disciplina? É um processo de fazer vocês realizarem algo que vocês não querem. Onde há disciplina, há medo. Então, a disciplina não é o caminho do amor. É por isso que a disciplina a qualquer preço deve ser evitada — disciplina como coerção, oposição, compulsão, forçando vocês a fazerem algo que realmente não entendem ou persuadindo vocês a fazê-lo em troca de uma recompensa. Se vocês não entenderem algo, não o façam, e não sejam forçados a fazê-lo. Peçam uma explicação. Não sejam apenas obstinados, mas tentem descobrir a verdade da questão para que nenhum medo esteja envolvido e suas mentes se tornem bastante flexíveis.

Quando vocês não entendem e são simplesmente forçados pela autoridade do adulto, estão reprimindo suas próprias mentes, e aí aparece o medo; e esse medo lhes perseguirá como uma sombra pela vida toda. É por isso que é tão importante não ser disciplinado com qualquer tipo de pensamento ou padrão de ação. Mas a maioria das pessoas mais velhas só consegue pensar a partir dessa lógica. Elas querem força-los a fazer algo para o suposto bem de vocês. Esse processo destrói a sensibilidade, a capacidade de entender e, portanto, o amor em vocês. Recusarem-se a ser coagidos ou forçados é muito difícil, porque o mundo em torno de nós é muito forte; mas se nós simplesmente cedermos e fizermos as coisas sem entender, cairemos no hábito da desatenção e, assim, será ainda mais difícil de escaparmos disso.

Então vocês devem ter autoridade e disciplina na escola? Ou vocês devem ser estimulados pelos professores a discutirem essas questões, entrarem nelas, entende-las, para que quando forem adultos e saírem para o mundo, sejam indivíduos maduros e capazes de enfrentar de forma inteligente os problemas do mundo? Vocês não poderão ter inteligência profunda se houver qualquer tipo de medo. O medo apenas os torna insensíveis, ele reprime a iniciativa, destrói aquela chama que chamamos de solidariedade, generosidade, afeição, amor. Então, não permitam ser disciplinados para um padrão de ação, mas descubram — o que significa que vocês precisam ter o tempo para perguntar, para indagar. E os professores também precisam ter tempo. Se não houver essa disponibilidade, então, deverá ser criada. O medo é uma fonte de corrupção, é o início da degeneração, e estar livre do medo é mais importante que qualquer prova ou qualquer diploma acadêmico. 

Krishnamurti

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Por quê, praticamente todo mundo fala da vida dos outros?

Pergunta: A bisbilhotice tem valor na autorrevelação, principalmente porque revela como são os outros. Por que não usar a bisbilhotice como um meio de descobrir o que é? Não estremeço ao escutar a palavra “bisbilhotice” só porque ela tem sido condenada por muitas gerações.

Krishnamurti: Pergunto-me por que fazemos mexericos. Não é porque eles nos revelam como os outros são. E por que haveríamos de querer conhecer os outros? Por que esse tremendo interesse na vida de outras pessoas? Por que bisbilhotamos? É uma forma de inquietação, não é? Como a preocupação, isso também é indicação de uma mente inquieta. Por que temos esse desejo de interferir na vida dos outros, de saber o que eles estão fazendo, falando? A mente que se entrega a bisbilhotices é bem superficial, não é? Pode ser uma mente investigadora que tomou um rumo errado. A pessoa que me fez a pergunta parece pensar que, por causa de seu interesse pelos outros, eles se revelarão com seus pensamentos, ações e opiniões. Mas podemos conhecer os outros, se não conhecemos a nós mesmos? Podemos julgá-los, se nem sabemos por que razão pensamos, agimos e nos comportamos de um determinado jeito? Por que nos preocupamos tanto como os outros? Não será uma forma de fuga, esse desejo de saber o que os outros estão pensando, sentindo, sobre o que estão falando? Isso não será um meio de escapar de nós mesmos? Nesse hábito, não haverá também o desejo, puro e simples, de nos intrometermos na vida dos outros? Penso que a nossa vida já é bastante difícil, bastante dolorosa, sem que lidemos com a vida de outras pessoas. Como achamos tempo para pensar nos outros de modo tão bisbilhoteiro e cruel? Por que agimos assim? Todo mundo faz isso. Todo mundo, praticamente, fala da vida dos outros. Por quê?

Acho que nos entregamos a mexericos porque não estamos suficientemente interessados no processo do nosso próprio pensamento e de nossas ações. Queremos ver o que os outros estão fazendo e, para falar com delicadeza, queremos imitá-las. E por que queremos isso? tal desejo não indica superficialidade de nossa parte? É uma mente estúpida, essa, que sai de si mesma para ir em busca de excitação. Em outras palavras, bisbilhotice é uma forma de sensação à qual nos entregamos. Pode ser um tipo diferente de sensação, mas há sempre o desejo de excitação, de distração. É, de fato, uma pessoa bastante superficial, essa que busca excitação externa, falando dos outros. Preste atenção quando estiver bisbilhotando a respeito de alguém, porque isso lhe mostrará muita coisa sobre si mesmo. Não tente disfarçar, dizendo que só está curioso a respeito de outras pessoas. A verdade é que isso indica inquietação, desejo de excitação, superficialidade e falta de um verdadeiro e profundo interesse nas pessoas, que nada tem a ver com bisbilhotice.

Outro problema é como parar com os mexericos. Quando percebemos que estamos falando de alguém, como paramos? Se isso se tornou um hábito, uma coisa feia que se repete dia após dia, o que fazer para acabar com esse comportamento? Quando você se pega bisbilhotando e está cônscio de todas as implicações dessa ação, não diz a si mesmo para parar? E não pára, no mesmo instante em que percebe que está sendo bisbilhoteiro? Experimente isso na próxima vez em que estiver falando de alguém, e verá como pára de bisbilhotar, quando percebe o que está fazendo, quando se conscientiza de que sua língua o domina. Não é preciso ter força de vontade para isso, basta que você esteja cônscio do que está falando e veja as implicações. Não é preciso condenar ou justificar a bisbilhotice. Esteja alerta, perceba o que está dizendo, e verá como pára rapidamente de falar, porque o que você fala lhe revela como age, como se comporta e qual é o seu padrão de pensamento. Nessa revelação, descobrirá a si mesmo, o que é muito mais importante do que falar dos outros, fazer comentários sobre o que eles fazem, o que pensam e como se comportam.

Muitos de nós lemos jornais que estão cheios de mexericos, numa bisbilhotice global. É um modo de fugirmos de nós mesmos, de nossa mesquinharia, do que há de feio em nossa vida. Pensamos que, por meio de um interesse superficial nos acontecimentos do mundo, tornamo-nos mais sábios, mais capazes de lidar com nossos próprios problemas. E isso não é um meio de fuga? Somos tão vazios, tão pouco profundos, temos tanto medo de nós mesmos! Somos tão pobres que a bisbilhotice torna-se uma forma de rico entretenimento, uma fuga de nós mesmos. Tentamos preencher nosso vazio interior com conhecimento, rituais, intrigas, com uma infinidade de meios de fuga que se tornam de vital importância, quando o mais importante deveria ser a compreensão do que é. Essa compreensão exige atenção. Saber que somos vazios, que estamos sofrendo, pede total atenção, não meios de fuga, mas são muitos os que gostam desses meios porque eles são muito mais prazerosos. Quando me vejo como realmente sou, acho muito difícil lidar comigo mesmo, e esse é um problema com os quais todos nós nos confrontamos. Sabemos que somos vazios, que estamos sofrendo, mas não sabemos o que fazer, não sabemos como lidar com isso. Então, recorremos a todos os tipos de fuga.

Assim, a pergunta é: o que fazer? É óbvio que não podemos escapar, pois seria um absurdo, uma infantilidade. Mas, quando você vê diante de si mesmo, quando se vê como é, o que deve fazer? Primeiro, é possível você não negar ou justificar o que vê, mas conservar-se como é? Isso é extremamente difícil, porque a mente busca explicação, condenação, identificação. Se ela não faz nada disso, é possível aceitar alguma coisa. Se aceito que sou escuro, está acabado, mas se lamento não ter a pele mais clara, isso é um problema. É muito difícil aceitar o que é, só conseguimos isso quando não há fuga, e condenação ou justificação são formas de fuga. Assim, quando entendemos por que falamos tanto dos outros, e como esse comportamento é absurdo, cruel e tudo o mais o que ele envolve, ficamos frente a frente com o que somos e, ou tentamos destruir o que vemos, ou tentamos transformá-lo em algo diferente. Se não fizermos nenhuma dessas coisas, mas decidirmos compreender e aceitar completamente o que vemos, descobriremos que não é mais aquilo que temíamos. Então, existe a possibilidade de transformamos aquilo que é.

Krishnamurti - A primeira e última liberdade

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O que acontece quando não há esforço para fugir?


Para a maioria de nós a vida se baseia no esforço, em algum tipo de vontade. Não é possível imaginar uma ação sem vontade, sem esforço. A vida social, a econômica e a que chamam espiritual são uma série de esforços que sempre produzem um certo resultado. E, assim, pensamos que o esforço é necessário, imprescindível.

Por que fazemos esforço? Falando simplesmente, não é porque queremos alcançar algum resultado, uma meta, nos tornarmos alguma coisa? Se não fazemos esforço, achamos que estamos estagnados. Formamos uma ideia a respeito do objetivo pelo qual estamos constantemente lutando, e essa luta torna-se parte de nossa vida. Se queremos nos modificar, efetuar uma mudança radical em nós mesmos, fazemos um tremendo esforço para eliminar antigos hábitos, para resistir às habituais influências do meio, e assim por diante. Então, estamos acostumados a essa série de esforços para encontrarmos ou realizarmos alguma coisa, enfim, para viver.

Todo esse esforço não é atividade do eu? Não é uma atividade egocêntrica? Se fizermos um esforço a partir do eu, isso inevitavelmente produzirá mais conflito, mais confusão, mais infortúnio. No entanto, continuamos a fazer esforço após esforço. Poucos de nós compreendem que a atividade egocêntrica do esforço não soluciona nenhum dos nossos problemas. Ao contrário, ela aumenta a nossa confusão e infelicidade. Sabemos disso, mas continuamos a achar que podemos progredir por meio dessa atividade egocêntrica do eu, dessa ação da vontade.

Penso que entenderemos o significado da vida se compreendermos o que significa fazer esforço. A felicidade vem por meio do esforço? Você já tentou ser feliz esforçando-se? Isso é impossível, não é? Você luta para ser feliz, e a felicidade não vem. A alegria não vem por meio da opressão, do controle, nem da complacência. Você pode ser complacente, mas o que encontra no fim é amargura. Pode oprimir ou controlar, mas nisso também há sempre conflito. Assim, a felicidade não vem pelo esforço, nem a alegria por meio da opressão e controle, mas, apesar disso, nossa vida é uma sequencia de atos repressores, controladores e de lamentável complacência. Há também um constante processo de superação, de luta contra as nossas paixões, contra a nossa ganância e estupidez. Não lutamos, então, não nos esforçamos, na esperança de encontrar a felicidade, de encontrar alguma coisa que nos dê um senso de paz e de amor?  Mas amor e compreensão vem pela luta? Penso que é muito importante esclarecermos o que entendemos por luta ou esforço.

Esforço não significa uma luta para transformar o que é no que não é, ou no que deveria ser? Estamos constantemente lutando para não encarar o que é, ou tentando fugir dele ou modifica-lo. Um homem que se sente verdadeiramente contente é aquele que compreende o que é e lhe dá o significado correto. O verdadeiro contentamento é esse, é não estar preocupado por ter poucas ou muitas posses, é compreender o total significado do que é. E isso só pode acontecer quando reconhecemos o que é, quando o percebemos, não quando estamos tentando modifica-lo.

Assim, vemos que o esforço é uma tentativa, uma luta, para transformar aquilo que é em algo que desejamos que seja. Estou falando apenas de luta psicológica, não da luta com uma situação física, como na engenharia, numa descoberta ou numa transformação, pois isso é puramente técnico. Só estou falando da luta psicológica, que sempre supera a da técnica. Pode-se construir uma sociedade maravilhosa usando o infinito conhecimento que a ciência nos dá. Mas enquanto o esforço e a luta psicológicos não forem compreendidos, as nuances e as tendências psicológicas não forem superadas, a estrutura da sociedade, apesar de maravilhosamente construída, correrá o risco de ruir, o que tem acontecido repetidas vezes.

O esforço desvia a nossa atenção do que é. No momento em que aceitamos o que é, a luta termina. Qualquer forma de luta ou conflito indica desvio, e esse desvio, que é esforço, obrigatoriamente existe quando nós, psicologicamente, desejamos transformar o que é em algo que não é.

Primeiro, precisamos ser livres para ver que a alegria e a felicidade não vêm por meio do esforço. A criação se dá por meio do esforço, ou apenas quando ele cessa? Quando é que criamos? Sem dúvida, quando não há esforço, quando estamos completamente abertos, quando, em todos os níveis, estamos completamente integrados. Então há alegria, e começamos a cantar, ou escrever uma poesia, ou pintar, ou criar alguma coisa. O momento da criação não nasce da luta.

Talvez, se compreendermos a questão da criatividade, possamos compreender o que queremos dizer com “esforço”. A criatividade resulta do esforço? Estamos cônscios de nós mesmos quando estamos sendo criativos?

Ou a criatividade é um senso total de esquecimento de nós mesmos, um estado que não há tumulto algum, em que estamos inteiramente inconscientes do movimento do pensamento e há apenas um rico senso de plenitude do ser? Esse estado é fruto de trabalho árduo, de luta, de conflito, de esforço? Não sei se você alguma vez notou que, quando faz algo com facilidade, rapidamente, não há esforço; ao contrário, há uma completa ausência de luta. Mas como a nossa vida é quase sempre uma série de batalhas, conflitos e esforços, não conseguimos nos imaginar vivendo um estado de ser em que toda luta cessou completamente.
Para que se entenda esse estado de ser sem luta, esse estado de existência criativa, é preciso analisar o problema do esforço. Por “esforço” queremos dizer a luta pela realização pessoal, pela satisfação do desejo de ser alguém, não é? Eu sou isto, quero ser aquilo. Não sou aquilo e quero ser. Querer ser “aquilo” gera luta, conflitos, batalhas. Nessa luta, invariavelmente nos preocupamos com nossa realização relativa a alcançar um certo fim. Buscamos realização pessoal em um objeto, uma pessoa, uma ideia, e isso exige batalha constante, exige que nos esforcemos para nos tornarmos alguma coisa, para nos sentirmos realizados. Então, consideramos esse esforço inevitável, e eu me pergunto se essa luta para nos tornarmos alguma coisa é inevitável. Qual o motivo dessa luta? Onde há o desejo de realização, em qualquer grau, a luta. Realização é o motivo, o impulso por trás do esforço e, seja um grande executivo, uma dona de casa, ou um homem pobre, todos estão batalhando para para ser alguma coisa, para se sentirem realizados.

Bem, por que existe esse desejo de autorrealização? É um desejo, obviamente, que surge quando a pessoa acha que não é nada. Como eu não sou nada, como sou insuficiente, vazio, pobre internamente, luto para me tornar alguma coisa, por dentro e por fora, luto para me realizar por intermédio de uma pessoa, uma coisa, ou uma ideia. Preencher esse vazio é todo o processo de nossa existência. Ao percebermos que estamos vazios, pobres por dentro, lutamos para conquistar coisas exteriores, ou cultivarmos a riqueza interior. Existe esforço apenas quando há uma fuga desse vazio interior, por meio de contemplação, aquisição, realização, poder, e por aí adiante. Essa é a nossa existência diária. Estou cônscio de minha insuficiência, dessa minha pobreza interior, e luto para fugir disso, preencher esse vazio. Essa fuga, ou essa tentativa de preencher o vazio, causa luta, conflito, esforço.

O que acontece quando não fazemos esforço para fugir? Vivemos com essa solidão, com esse vazio, e, ao aceitarmos isso, vemos surgir um estado criativo, que não tem nada a ver com luta, com esforço. Existe esforço apenas enquanto tentamos evitar a solidão interior, mas quando a examinamos, quando aceitamos o que é, sem tentar evita-lo, alcançamos um estado de ser em que toda luta cessou. Esse estado de ser é criatividade, e não resulta de esforço.

Quando compreendemos o que éou seja, o vazio, a insuficiência interior, e vivemos com essa insuficiência e a compreendemos completamente, encontramos a realidade criativa — a inteligência criativa —, que, por si só, traz felicidade.

Assim, a ação, como a conhecemos na verdade é reação, uma transformação incessante, e isso é negação do que é. Mas quando há uma conscientização do vazio, sem condenação ou justificativa, com compreensão do que é, então, sim, a ação é criatividade. Você compreenderá isso se estiver cônscio de si mesmo, quando em ação. Observe-se quando estiver agindo, veja a si mesmo não apenas externamente, mas procure perceber também o movimento de seus pensamentos e sentimentos. Quando perceber esse movimento, verá que o processo do pensamento, que também é de sentimento e ação, baseia-se em uma ideia de transformação. Essa ideia surge apenas quando há um senso de insegurança, e esse senso vem quando se está cônscio do vazio interior. Se você estiver cônscio desse processo de pensamento e sentimento, verá que há uma batalha em constante andamento, um esforço para mudar, alterar o que é. Esse é o esforço de transformação, e transformar é evitar diretamente o que é. Por meio do autoconhecimento, da constante conscientização de si mesmo, você descobrirá que a luta pela transformação leva à dor, ao sofrimento e à ignorância. Só quando estiver cônscio de sua insuficiência interior e viver com ela, sem tentar fugir, aceitando-a integralmente, é que você descobrirá uma maravilhosa tranquilidade, uma tranquilidade que não é fabricada, não é construída, mas que vem com a compreensão do que é. E é só nesse estado de tranquilidade que pode haver existência criativa.

Krishnamurti

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Como promover a essencial mudança radical em nós mesmos?


Dissemos outro dia que se faz necessária uma revolução radical, não só na estrutura da sociedade, mas também psicologicamente. Há uma necessidade de uma total mutação interior, de uma revolução no ser psicológico.


Vemos a sociedade mergulhada numa terrível desordem, baseada que está na avidez, na inveja, no poder, na posição, etc. E nós, entes humanos, componentes da sociedade vemo-nos também em desordem. Porque a vida do ente humano em geral — a rotina diária, o diário tormento de ganhar o sustento — terrível solidão e tédio, interminável repetição — pouco significa. Para dar significado e sentido à vida, inventaram os intelectuais, em todo o mundo, no Ocidente e no Oriente, filosofias e religiões; disseram: “Existe Deus; há um certo estado mental que devemos esforçar-nos para alcançar”. Também um grande número de filósofos têm dito coisas sem nenhuma relação com a vida. Tem-se tentado dar-lhe significado, porém, na realidade — não intelectual ou idealmente considerada — a vida, tal como é, tal como a conhecemos diariamente, é na verdade absolutamente sem significação. Sem significação, não só porque nós, entes humanos, nos achamos num estado de desordem, mas porque nossa vida é toda de repetição. Passamos anos inteiros num escritório — quarenta ou cinquenta — a executar incessantemente coisas desinteressantes e, é bem de ver, interiormente a desordem é cada vez maior. Exteriormente, tem-se tentado estabelecer a ordem mediante a legislação, mediante a ditadura sob várias formas, mediante o controle da mente e do comportamento humano — criando-se, no exterior, politicamente, economicamente, um simulacro de ordem, enquanto interiormente, nenhuma ordem existe. A ordem implica — não é verdade? — um estado inteiramente livre de conflito; um estado mental lúcido, livre de toda rotina; um estado mental não condicionado por inclinações ou tendências pessoais ou compelido por influências externas, ambientes. E essa ordem — assim me parece — deve nascer sem esforço algum de nossa parte; ela não pode ser produzida pela vontade, pelo empenho, no terreno dos conceitos e das ideias. Em nossa mente confusa, em nossa aflição, em nossa infinita solidão e conflito, tal esforço não pode, de modo nenhum, criar a ordem, porém, tão-só, aumentar a confusão.

Que fazer? Que deve fazer um ente humano, ao compreender que está confuso, incerto, vivendo uma vida de rotina, de imitação, de ajustamento a um padrão estabelecido pela sociedade de que faz parte, e percebendo a um só tempo a necessidade de ordem dentro de si mesmo? Se não há ordem interior, por maior que seja a ordem exterior, a desordem interior superará o simulacro de ordem externa. Isso me parece bastante claro. Assim, como estabelecer ordem nós mesmos?

Ordem significa um estado mental em que não há contradição e, portanto, nenhum conflito. Isso não implica estagnação ou declínio. A ordem que obedece a uma fórmula, a um ideal ou conceito é, simplesmente, desordem. Se um ente humano se ajusta a um padrão de pensamento — uma certa coisa ideal que ele deveria ser — nesse caso está meramente a imitar, a ajustar-se, a disciplinar-se, a forçar-se, a fim de adaptar-se a um molde. Assim fazendo (como na vida em sociedade vem sendo forçado a fazer há séculos e séculos, porquanto a sociedade trata sempre de controla-lo mediante diferentes sansões religiosas, leis, etc.), nesse caso, naturalmente, está sempre a produzir-se uma grande desordem. Essa me parece ser a razão básica da revolta que atualmente se observa em todo o mundo. As gerações mais novas estão tratando de lançar fora as ideias, os deuses, as normas de conduta da geração mais velha; tudo isso está sendo posto de lado; estão em revolta contra a sociedade, contra a ordem estabelecida. E, todavia, a ordem que estão buscando irá estabilizar-se, pouco a pouco, num padrão e, por conseguinte, criará a desordem neles próprios.

O problema, portanto, é este: Como promover a mudança radical? Essa é uma necessidade essencial e óbvia. Se existe um motivo para a mudança, nesse caso a pessoa está agrilhoada ou escravizada ao passado, uma vez que todos os motivos procedem do fundo de condicionamento de cada um.

Espero que, juntos, possamos examinar a fundo esta matéria. Se estais apenas a ouvir intelectual, emocional ou verbalmente, nesse caso não estamos trabalhando juntos; estais apenas a ouvir algumas séries de ideias e a concordar ou discordar — e isso tem muito pouco valor. Mas se, realmente, pudermos, todos juntos, penetrar este problema, destrinchá-lo de fato, vive-lo, nesse próprio ato de escutar poderá operar-se a revolução radical, psicológica.

Todos estamos de acordo (pelo menos intelectualmente) quanto a necessidade de uma mudança em toda a estrutura mental, no ser inteiro. Nesse sentido temos tentado vários meios: disciplina, ajustamento, obediência, seguir; ou temos aceito a vida tal qual é e tratado de vive-la a pleno; e, se temos certas capacidades, dinheiro, ao chegar a morte dizemos que vivemos uma boa vida e agora é chegado o fim dela. Podemos perceber que, para viver, necessita-se ordem — porque sem ordem não há paz — mas a ordem que se cria mediante a identificação do indivíduo com um conceito, uma ideia, uma fórmula, só produz isolamento. Embora a pessoa possa identificar-se com uma coisa tal o nacionalismo ou uma ideia de Deus, essa identificação causa separação e conflito. Por conseguinte, o identificar-nos com uma ideia, um conceito, não efetua nenhuma mudança radical.

Exteriormente, estão-se verificando enormes mudanças tecnológicas, porém, interiormente, continuo o mesmo que sou há séculos — em conflito, aflição, a batalhar comigo mesmo e com os outros; minha vida é um campo de batalha, todas as minhas relações baseiam-se em imagens formadas pelo pensamento. Sendo a vida um campo de batalha, desejo alterá-la, porque vejo que nenhuma possibilidade tenho de viver em paz, dentro de mim mesmo, ou com a sociedade, ou com meu semelhante, a menos que haja perfeita ordem, quer dizer, liberdade perfeita. A ordem só pode tornar-se existente quando há liberdade; e não é possível a liberdade pela escravização a uma ideia, ou a aceitação de uma certa teologia, ou o ajustamento a um certo padrão, imposto pela sociedade ou por mim próprio. Que devo fazer, então? Não sei se já refletistes a esse respeito; se o fizestes, deveis ter percebido que se trata realmente de um problema formidável. Que devo fazer, eu, um ente humano condicionado por milhões de anos, dotado de um cérebro que só funciona por padrões de autoconservação (autoconservação que leva cada vez mais ao isolamento e, portanto, a mais e mais conflito), que devo fazer? Percebendo todo este campo de batalha em que, como ente humano, estou vivendo, atormentado pelo medo, pelo sentimento de “culpa”, pelo desespero; apegado às memórias do passado; temendo morrer; vivendo numa semi-obscuridade, embora suficientemente engenhoso para inventar teorias de toda espécie; trabalhando, escrevendo livros, explicando, fazendo tudo o que em geral fazem os entes humanos — percebendo tudo isso, não como ideia, não como coisa existente fora de mim, porém, vendo realmente que essa é minha vida, que devo fazer? Como mudar toda estrutura psicológica de minha existência?

Se este é um problema que vos concerne tanto quanto concerne ao orador (não é propriamente um problema meu, mas estamos explorando juntos), que devemos fazer? É claro que não pode mais haver autoridade alguma, pois ninguém pode dizer-nos o que devemos fazer — nenhum sacerdote, nenhum teólogo, nenhum guru, nenhum livro, nenhum agente externo pode dizer-nos o que devemos fazer. Tudo isso já tentamos e não tem significação alguma, nem nunca a teve. Uma vez que não pode haver nenhuma autoridade, tenho de depender totalmente de mim mesmo. Entretanto, esse “eu mesmo” é uma entidade confusa. Quanto mais rejeito todo e qualquer agente externo que me prometa uma mudança dentro de mim mesmo — sanções, leis que me obrigam a fazer isto ou aquilo — quanto mais rejeito tudo isso, tanto mais cônscio me torno do enorme problema de “mim mesmo” — um ente confuso, incerto, ignorante. E, ao tornar-me cônscio disso, há mais medo, mais desespero e, como reação, uma reversão às condições anteriores, isto é, trato de ingressar em organizações políticas ou religiosas; se eu era católico, torno-me protestante; se era protestante, trato de seguir o Zen ou de adotar outra espécie de distração. E o problema fundamental fica sem solução.

Eis, pois a situação. Rejeitamos totalmente a autoridade externa — se a temos — percebendo que essa autoridade é uma das causas da desordem. Vemos que estivemos seguindo um certo “instrutor”, filósofo, salvador, e que o seguíamos por medo e não por amor. Se tivéssemos amor, não seguiríamos ninguém; o amor não obedece, o amor não conhece dever e responsabilidade. Uma pessoa segue, aceita, obedece, essencialmente porque tem medo — medo de não alcançar os seus fins, de errar o caminho, etc. — há dúzias de formas de medo. Interiormente, é dificílimo rejeitar a autoridade — a autoridade de outrem e também a autoridade de nossos próprios conceitos, de nossa passada experiência. Relativamente fácil é rejeitar a autoridade da sociedade; os monges o têm feito de várias maneiras e a moderna “geração mais nova” o está fazendo de diferente maneira. Mas, o livrar-nos da autoridade de nosso próprio condicionamento, de nossas experiências, da autoridade do passado é sobremodo importante, é essencial, porque é ela que gera a autoridade externa, e também o medo, dado o nosso desejo de certeza, segurança, proteção.

Assim, o libertar-nos do passado, que significa libertar-nos do medo, do medo psicológico, é, sem dúvida, o primeiro requisito da ordem. Podemos ficar totalmente livres do temor, tanto no nível consciente como no inconsciente?

Krishnamurti – 20 de abril de 1967 - A essência da Maturidade – Ed. ICK – pág. 20 à 24

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A compreensão de nós mesmos é o despertar e o fim do medo


Existe o medo. O medo nunca é uma realidade: ele vem sempre antes ou depois do presente ativo. Quando há medo no presente ativo, será isso medo? Ele está ali e não há como fugir dele, não há como escapar. Ali, no momento presente, há atenção total ao momento de perigo, físico ou psicológico. Quando existe uma atenção total não existe medo. Mas o próprio fato da desatenção gera o medo; o medo surge quando existe a evitação do fato, uma fuga; então, a fuga é, ela própria, o medo.

O medo em suas diversas formas — culpa, ansiedade, esperança, desespero — está presente em cada movimento do relacionamento; ele está presente em cada busca de segurança; ele está presente na ambição e no sucesso; está presente na vida e na morte; está presente nas coisas físicas e nos fatores psicológicos. Existe o medo em muitas formas diferentes e em todos os níveis da nossa consciência. A defesa, a resistência e a negação nascem do medo. Medo do escuro e medo da luz; medo de ir e medo de vir. O medo começa e termina com o desejo de segurança, de ter segurança interior e exterior, com o desejo de ter certeza, de ter permanência. A continuidade da permanência é procurada em todas as direções, na virtude, no relacionamento, na ação, na experiência, no conhecimento, nas coisas exteriores e nas interiores. Encontrar a segurança e tornar-se seguro é a última palavra. É essa demanda insistente que produz o medo.

Mas existe permanência, exterior ou interior? Talvez, em certa medida, existe a permanência exterior, mas mesmo essa é precária: há guerras, revoluções, progresso, acidentes e terremotos. É preciso que haja alimentos, roupas e abrigos; isso é essencial e necessário para todos. Embora sempre procurada, tanto às cegas como através da razão, será que existe a certeza interior, a continuidade interior, a permanência? Não existe. A fuga dessa realidade é medo. A incapacidade de enfrentar essa realidade produz todo tipo de esperança e desespero.

O próprio pensamento é a fonte do medo. Pensamento é tempo; o pensamento no amanhã é prazer ou dor; se for algo prazeroso, o pensamento irá persegui-lo, temendo que acabe; se for doloroso, a própria tentativa de evita-lo já é medo.  Tanto o prazer quanto a dor provocam medo. Tempo como pensamento e tempo como sentimento provocam medo. O único meio de acabar com o medo é a compreensão do pensamento, do mecanismo da memória e da experiência. O pensamento é todo o processo da consciência, tanto o visível como o oculto; o pensamento não é apenas a coisa em que se pensa, mas também a origem de si mesmo. O pensamento não é, meramente, crença, dogma, ideia e razão, mas o núcleo do qual isso tudo brota. Esse núcleo é a origem de todo o medo. Mas é da experiência do medo ou da percepção da causa do medo que o pensamento tenta escapar? A autoproteção física é algo útil, normal e saudável; mas qualquer outra forma de autoproteção interior é resistência e sempre reúne forças, se robustece, e isso é medo. Mas esse medo interior faz com que a segurança exterior se torne um problema de classe, de prestígio, de poder e o resultado disso é uma competição implacável.

Quando se enxerga todo o processo de pensamento, tempo e medo — e não como uma ideia, uma fórmula intelectual — há o fim definitivo e total do medo, consciente ou oculto. A compreensão de nós mesmos é o despertar e o fim do medo.  

E quando o medo cessa, o poder de criar ilusão, mitos e visões, com sua esperança e desespero, também cessa, e só então tem início um movimento de ir além da consciência, a qual é pensamento e sentimento. É o esvaziar de nossos recessos mais profundos e das vontades e desejos mais ocultos. Então, quando se atingiu o vazio total, quando não há absoluta e literalmente nada, nenhuma influência, palavra, valor ou fronteira, então, nesse silêncio total do espaço-tempo, existe o que é indizível.

Krishnamurti – Diário de Krishnamurti – Paris, 14 de setembro de 1961

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O conhecido e o desconhecido


Pode aquilo que é incomensurável ser encontrado por mim e você? Pode aquilo que não é temporal ser buscado por aquilo que é formado pelo tempo? Pode uma disciplina diligentemente praticada nos levar até o desconhecido? Pode essa realidade ser captada pela rede de nossos desejos? O que podemos captar é a projeção do conhecido; mas o desconhecido não pode ser captado pelo conhecido. Aquilo que é nomeado não é o inominável, e ao nomear nós apenas despertamos as reações condicionadas. Essas reações, por mais nobres e agradáveis, não pertencem ao real. Nós reagimos a estímulos, mas a realidade não oferece estímulos: ela é.

A mente se move do conhecido para o desconhecido, e ela não pode alcançar o desconhecido. Nós não podemos pensar em algo que não conhecemos; é impossível. Aquilo sobre o que você pensa resulta do conhecido, do passado, quer seja esse passado remoto ou o segundo que acabou de passar. Esse passado é pensamento, moldado e condicionado por muitas influências, modificando-se segundo as circunstâncias e pressões, mas sempre permanecendo como um processo do tempo. O pensamento só consegue negar ou afirmar, ele não pode descobrir ou pesquisar o novo. O pensamento não pode chegar ao novo; mas quando do pensamento está silencioso, aí pode haver o novo — que é imediatamente transformado no velho, no experienciado, pelo pensamento. O pensamento está sempre moldando, modificando e colorindo segundo um padrão de experiência. A função do pensamento é se comunicar, mas não estar no estado de experienciar. Quando a experiência cessa, o pensamento assume o controle e a denomina dentro da categoria do conhecido. O pensamento não pode penetrar no desconhecido e, assim, nunca pode descobrir ou experienciar a realidade.

Disciplina, renúncia, desapego, rituais, a prática da virtude — tudo isso, independentemente do quão nobre seja, é um processo do pensamento; e o pensamento só pode trabalhar em direção a um fim, em direção a uma realização, que é sempre o conhecido a realização é segurança, a certeza auto-protetora do conhecido. Buscar segurança naquilo que é sem nome é negá-lo. A segurança que pode ser encontrada está somente na projeção do passado, do conhecido.  Por esse motivo, a mente deve estar profunda e inteiramente silenciosa; mas esse silêncio não pode ser conseguido por meio do sacrifício, sublimação ou repressão. Esse silêncio vem quando a mente deixou de buscar, quando não está mais presa ao processo de se tornar. Esse silêncio não é cumulativo, não pode ser construído pela prática. Ele deve ser tão desconhecido para a mente quanto o eterno; pois se a mente experiência o silêncio, então existe o experienciador, que é o resultado de experiências passadas, que é conhecedor de um silêncio passado; e o que é experienciado pelo experienciador é simplesmente uma repetição projetada. A mente jamais pode experienciar o novo e, portanto, deve estar inteiramente silenciosa.

A mente só pode estar silenciosa quando não está experienciando, isto é, quando não está nomeando ou denominando, registrando ou armazenando na memória. Essa nomeação e esse registro são um processo constante dos diferentes níveis da consciência, não simplesmente da camada mais superficial da mente. Mas quando a mente superficial está silenciosa, a mente mais profunda pode oferecer suas sugestões. Só quando toda a consciência está silenciosa e tranqüila, livre de todo o anseio de tornar-se, o que é espontaneidade, o incomensurável toma forma. O desejo de manter essa liberdade dá continuidade à memória daquele que quer se tornar, o que é um obstáculo à realidade. A realidade não tem continuidade; é de momento a momento, sempre nova, sempre original. O que tem continuidade jamais pode ser criativo.

A camada mais superficial da mente é somente um instrumento de comunicação, não podendo medir aquilo que é incomensurável. A realidade não é para ser comentada; e quando o é, não é mais realidade.

Isso é meditação.

Krishnamurti 

O que é essa estranha coisa chamada amor?

Dou-me conta de que o amor não pode existir quando há ciúmes; o amor não pode existir quando há apego. Bem, agora, é possível para mim estar livre do ciúmes e do apego? Dou-me conta de que não amo. Isso é um fato. Não vou enganar a mim mesmo: não vou fingir com minha mulher que a amo. Não sei o que é o amor. Porém, se sei que sou ciumento e também sei muito bem que estou terrivelmente apegado a ela e que no apego há temor, ciúmes, ansiedade há um sentido de dependência. Não gosto de depender, porém, dependo porque me sinto só; me pressionam por todos os lados, no serviço, na fabrica, e venho para minha casa e quero sentir-me cômodo e em companhia, desejo escapar de mim mesmo. Agora me pergunto: Como hei de me libertar deste apego? Tomo isso só como um exemplo.

Em primeiro lugar, quero safar-me do problema. Não sei como vão terminar as coisas com minha mulher. Quando estiver realmente desapegado dela, minha relação com ela pode se modificar. Ela poderia apegar-se a mim e eu poderia não estar apegado a ela nem a nenhuma outra mulher. Porém, vou investigar. Portanto, não escaparei do que imagino poderia ser a consequência de estar totalmente livre de apego. Não sei o que é o amor, porém, vejo muito claramente, definidamente, sem nenhuma dúvida, que o apego por minha mulher significa ciúmes, possessão, medo, ansiedade; e desejo libertar-me de tudo isso. De modo que começo a investigar; busco um método e caio preso num sistema. Certo guru disse: "Lhe ajudarei a desapegar-se, faça isto e isto, pratica isto e aquilo". Aceito o que ele disse porque vejo a importância de estar livre, e ele me promete que se faço o que aconselha serei recompensado. Porém, vejo que desse modo estou buscando uma recompensa. Vejo o tonto que sou: quero ser livre e me apego a uma recompensa.

Não desejo estar apegado e, não obstante, me encontro apegado a ideia de que alguém ou algum livro ou algum método me recompensará livrando-me do apego. Por conseguinte, a recompensa se converte em um apego. Assim que digo: "Olhe para o que tem feito; seja cuidadoso, não caia preso nessa armadilha". Seja que se trata de uma mulher, de um método ou de uma ideia, isso segue sendo apego. Agora estou muito alerta porque tenho aprendido algo, ou seja, no trocar o apego por alguma outra coisa, segue sendo apego.

Pergunto-me: "Que devo fazer para libertar-me do apego?" Qual é o motivo para querer estar livre do apego? Não é que anseio alcançar um estado onde não há apego nem temor nem nada disso? E subitamente me dou conta de que o motivo imprime uma direção e que essa direção ditará minha liberdade. Por que ter um motivo? O que é um motivo? O motivo é uma esperança ou um desejo de mudar algo. Vejo que estou apegado a um motivo. Não só minha esposa, não só minha ideia, não só o método, senão que também o motivo se converteu em meu apego! De modo que todo o tempo estou funcionando dentro do campo do apego: a esposa, o método e o motivo de mudar algo no futuro. Estou apegado a tudo isto. Vejo que é algo tremendamente complexo; não havia me dado conta de que estar livre do apego implica todas estas coisas. Agora o vejo tão claramente como vejo num mapa as estradas principais, as estradas secundárias e os povoados; o vejo com muita clareza. Então digo-me: "Está bem, é possível para mim estar livre do grande apego que sinto por minha esposa e também estar livre da recompensa que penso que vou obter, assim como de meu motivo?" Estou apegado a tudo isto. Por que? É por que em mim mesmo sou insuficiente? É por que me sinto muito, muito só e por isso busco escapar da sensação de isolamento recorrendo a uma mulher, a uma idéia, um motivo, como se estivesse que aferrar-me a algo? Vejo que é assim, que me sinto só e que, mediante ao apego, escapo através de alguma coisa fugindo dessa sensação de extraordinário isolamento.

Estou, pois, interessado em compreender a razão do por que me sinto só, por que vejo que isso é o que faz com que me apegue. Essa solidão me tem obrigado a escapar, mediante o apego, para isto ou aquilo, e vejo que, enquanto prosseguir esse sentimento, a consequência será sempre esta. O que significa sentir-se só? Como ocorre? É algo instintivo, herdado, ou se origina em minha atividade diária? Se é um instinto, se é herdado, então forma parte de meu destino; não tenho culpa. Porém, como não aceito isto, o questiono e permaneço com a pergunta. Observo e não trato de encontrar uma resposta intelectual. Não trato de dizer para a solidão o que é e o que deveria fazer; observo para que ela me diga. Há um estado de atenta vigilância a fim de que a solidão se revela por si mesma. Não se revelará se fujo, se tenho medo, se a resisto. Portanto, a observo. A observo de modo que não interfira nenhum pensamento. A observação é muito mais importante que a intervenção do pensamento. E, graças a que toda minha energia se interessa na observação dessa solidão, o pensamento não intervém em absoluto. A mente é desafiada e tem que responder. Devido ao desafio está em crise. Numa crise você tem grande energia, e essa energia permanece sem ser interferida pelo pensamento. Este é um desafio a que devo responder.

Coloquei-me a dialogar comigo mesmo. Perguntei-me o que é essa coisa estranha chamada amor; todos falam dela, escrevem acerca dela; lhe fazem todos os poemas românticos, as pinturas, o sexo e todas as outras áreas que abarca. Pergunto: existe uma coisa como o amor? Vejo que não existe quando há ciúme, ódio, medo. De modo que já não me ocupo do amor; me interesso em "o que é", em meu medo, em meu apego. Por que estou apegado? Vejo que uma das razões — não digo que seja toda a razão — é que me sinto desesperadamente só, isolado. Quanto mais envelheço, mais isolado vou me sentindo. Por conseguinte, observo isso. Este é um desafio que me impulsiona a descobri e, devido a que é um desafio, toda a energia se concentra ai para responder. É algo simples. Se há uma catástrofe, um acidente ou o que for, isso é um desafio e tenho a energia para afrontá-lo. Não tenho que perguntar: "Como obtenho a energia?" Quando a casa se queima tenho a energia para entrar em ação, uma energia extraordinária. Não me sento e digo: "Bem, tenho que mudar esta energia" e fico esperando; então vai ter queimado toda a casa.

Assim, pois, tenho esta energia tremenda para responder a pergunta: Por que existe este sentimento de solidão? Rejeitei idéias, suposições e teorias acerca de que se trata de algo herdado, instintivo. Tudo isso não significa nada para mim. A solidão é "o que é". Por que existe esta solidão que todo ser humano, se é de algum modo consciente, experimenta seja de maneira superficial ou mais profunda? Por que se manifesta? É por que a mente faz algo que ocasiona esta solidão? Recusei teorias como o instinto e a herança, e me pergunto: É a mente, o cérebro mesmo que produz este sentimento de solidão, este isolamento total? É o movimento do pensar que faz isto, ele que cria em minha vida cotidiana este sentido de isolamento? No serviço me isolo porque quero chegar a ser o executivo máximo; portanto, o pensamento trabalha todo o tempo isolando-se em si mesmo. Vejo que o pensamento opera permanentemente para fazer-se superior, que a mente mesma induz este isolamento com sua atividade.

Assim, que o problema é: por que o pensamento faz isto? É sua natureza trabalhar para si mesmo? É a natureza do pensar criar este isolamento? É a educação o que o origina; esta me dá uma carreira, certa especialização e, por conseguinte, isolamento. O pensamento, sendo fragmentário, limitado, estando atado ao tempo, cria este isolamento. Nessa limitação tem encontrado segurança dizendo: "Tenho uma profissão especial em minha vida, sou um professor; estou perfeitamente seguro". Em consequência, me interessa saber por que o pensamento faz isto. Está em sua natureza mesma agir assim? Qualquer cosia que faça o pensamento tem que ser limitada.

Então, o problema é: Pode o pensamento dar-se conta de que qualquer coisa que faz é limitada, fragmentaria e, em consequência, isoladora, e que tudo o que fará será sempre assim? Este é um ponto muito importante: pode o pensamento mesmo dar-se conta de suas próprias limitações? Ou sou eu o que lhe diz que é limitado? Vejo que é indispensável que se compreenda isto, já que é a verdadeira essência da questão. Se o próprio pensamento se dá conta de que é limitado, então não há resistência nem conflito; diz: "Isso é o que sou". Porém, se eu lhe digo que é limitado, estou me separando da limitação. Então, luto para superar a limitação; por conseguinte, há conflito e violência, não amor.

Então, o pensamento mesmo se dá conta de que é limitado? Tenho que descobri-lo. Isto é um desafio que enfrento. Por causa de que enfrento um desafio, tenho uma grande energia. Expressando de outra forma: dá-se conta a consciência de que seu conteúdo é ela mesma? Ou ouvi outro dizer: "A consciência é seu conteúdo; o conteúdo compõe a consciência". Portanto, digo: "sim, é assim". Vejo a diferença entre um e o outro? O segundo, criado pelo pensamento, é imposto pelo "eu". Se imponho algo sobre o pensamento, há conflito. É como um governo tirânico impondo-se sobre alguém, porém, aqui, esse governo é de minha própria criação.

Pergunto-me, pois: o pensamento tem se dado conta de suas limitações? Ou pretende ser algo extraordinário, nobre, divino? Isto é um disparate, porque o pensamento se baseia na memória. Vejo que tem que haver clareza acerca deste ponto, ou seja, que não há uma influência externa que se imponha sobre o pensamento dizendo que é limitado. Então, devido a que não há imposição, não há conflito; o pensamento compreende, simplesmente, que é limitado, dá-se conta de que qualquer coisa que faça — render culto a Deus, etc. — é limitada, vulgar, insignificante, ainda quando haja criado por toda a Europa maravilhosas catedrais onde pode adorar.

Descobri, pois, nesta conversação comigo mesmo, que a solidão é criada pelo pensamento. Agora o pensamento deu-se conta, por si mesmo, de que é limitado e que, portanto, não pode resolver o problema da solidão. Como não pode resolver o problema da solidão, existe a solidão? O pensar tem criado este sentimento de solidão, este vazio interno, por causa de que é limitado, fragmentário, de que está dividido; e quando se dá conta disto, a solidão não existe e, portanto, estou livre do apego. Não fiz nada; observei o apego e o que implica: a ganância, o medo, a solidão, tudo isso, e seguindo-lhe a pista, observando-o, não analisando-o senão simplesmente olhando, olhando e olhando, descobri que o pensamento tem feito tudo isto. O pensamento, por ser fragmentário, tem criado este apego. Quando se dá conta, o apego termina. Não houve nenhum esforço, porque tão logo há esforço, o conflito regressa novamente.

No amor não há apego; se há apego não há amor. Eliminou-se o fator principal mediante a negação do que o amor não é, mediante a negação do apego. Sei o que isso significa em minha vida cotidiana: não me lembrar de nada do que o meu vizinho, minha esposa ou minha noiva fizeram para me machucar; não me apegar a nenhuma imagem que o pensamento tenha criado com respeito a minha esposa, como tenha me intimidado, como tem me brindado com consolo, como tenho tido prazer sexual com ela, todas as distintas coisas de que o movimento do pensar tem elaborado imagens; o apego a essas imagens tem desaparecido.

E existem outros fatores. Devo examiná-los todos, passo a passo, um por um? Ou tudo isso desvaneceu-se? Devo examinar cuidadosamente, investigar — como tenho investigado o apego — o temor, o prazer e o desejo de consolo? Vejo que não tenho que passar pela investigação completa de todos estes diversos fatores; o vejo de uma só olhada, o entendi.

Por conseguinte, ao negar o que não é o amor, o amor existe. Não tenho que perguntar o que é o amor. Não tenho que correr atrás dele. Se corro atrás dele, isso não é amor, é uma recompensa. Havendo, pois, negado nessa investigação tudo o que o amor não é, havendo terminado com isso lenta e cuidadosamente, sem distorção nem ilusão alguma, então o outro está aí.

Krishnamurti - Um diálogo consigo mesmo - Brockwood Park, Inglaterra, 30 de agosto de 1977

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O que significa estar em relação com outra pessoa?


Pergunta: Quase todos estamos casados ou comprometidos numa relação íntima que começou por todas as razões errôneas que você tem descrito tão corretamente. Pode um casamento ou uma relação assim se, converter-se alguma vez numa força realmente positiva? (risos)

Krishnamurti: Que pessoas tão miseráveis! Então, como abordamos esta pergunta? O que significa estar relacionado com outra pessoa? Você pode estar relacionado fisicamente de uma maneira muito estreita, intima, porém, alguma vez estamos relacionados psicologicamente, por inteiro? Não romanticamente, sentimentalmente; refiro-me ao sentido profundo de estar relacionados. A palavra relação significa estar em contato, ter um sentido de totalidade com o outro, não como entes separados que se juntam e se sentem totais, senão que a relação mesma produz esta qualidade, esta sensação de que não estão separados. Esta é, em verdade, uma questão sumamente importante, porque nossas vidas estão, em sua maior parte, muito isoladas, muito separadas, muito cuidadosamente estruturadas a fim de que não sejamos perturbados psicologicamente. E uma relação assim deve originar, inevitavelmente, conflito, perturbação e toda conduta neurótica que temos. Por conseguinte, juntos deixemos claro o que entendemos por relação, não só o significado dessa palavra, o significado verbal, senão o significado que há atrás da palavra, atrás das pessoas que estão relacionadas.

O que significa estar relacionados? Alguma vez estamos relacionados no sentido profundo dessa palavra? Pode haver uma relação dessa classe, inalterada, serena como as profundidades do mar? Pode haver se cada um de nós persegue seu próprio caminho particular, seu desejo particular, sua ambição particular e demais? Pode haver uma relação assim com o outro se existem estas coisas? Vocês dizem: “Como pode não existir? Acaso não é necessário que cada um de nós se realize, que floresça junto com o outro?” O que significa isso quando existe esse sentido de separação? Se cada um de nós diz que estamos nos ajudando mutuamente a florescer, a crescer, a nos realizarmos, a ser felizes juntos, então, seguimos mantendo o espírito de isolamento. Bem, agora, por que a mente, o cérebro, a entidade humana, se aferra sempre à separação? 
Por favor, esta é uma pergunta muito, muito séria. Por que os seres humanos tem mantido, em todo o curso da história, este sentido de isolamento, de separação, de divisão? Você é católico, eu sou protestante. Você pertence a esse grupo e eu pertenço aquele grupo. Eu coloco uma túnica roxa ou uma túnica amarela ou me cubro com uma grinalda; e mantemos isto enquanto falamos da relação, do amor e tudo o mais. Por quê? (Por favor, estamos cooperando, investigamos juntos). Por que fazemos isto? Isso é consciente, deliberado, ou é inconsciente, é nossa tradição, nossa educação? Toda a estrutura religiosa sustenta que estamos separados, que somos almas separadas, etc. É por que o pensamento em si é separativo? Compreende? Eu penso que estou separado de você. Penso que minha conduta deve estar separada da sua, porque do contrário, existe o temos de que nos tornemos automáticos, zumbis, que nos imitemos uns aos outros. É o pensamento a causa deste sentido de separação na vida? Por favor, investiguemos isso juntos. O pensamento tem separado o mundo em nacionalidades. Você é inglês, outro é alemão, eu sou francês, você é russo e assim sucessivamente. Esta divisão é criada pelo pensamento. E o pensamento supõem que nesta separação, nesta divisão há segurança; pertencendo a uma comunidade, pertencendo ao mesmo grupo, tendo fé num mesmo guru, acreditando nas mesmas roupas que você veste conforme os mandos do guru, você se sente seguro, ao menos tem a ilusão de que está seguro.

Assim nos perguntamos: O que nos separa é o prazer, o desejo agradável que é também o movimento do pensar? Correto? Ou seja, o pensamento é alguma vez completo, total? Porque o pensamento se baseia no conhecimento, que é a imensa experiência acumulada do homem, seja no mundo científico, tecnológico ou psicológico. Temos acumulado uma grande quantidade de conhecimentos, tanto externa como internamente. E o pensamento é o resultado desses conhecimentos, o pensamento como memória, conhecimento, experiência. Portanto, o conhecimento jamais pode ser completo acerca de nada: acerca de Deus, do nirvana, do céu, da ciência..., de nada. De modo que o conhecimento deve marchar sempre junto com a sombra da ignorância. Por favor, vejamos esta fato juntos. Por isso, quando o pensamento penetra dentro do campo da relação, deve criar uma divisão, porque o pensamento mesmo é limitado. De acordo?

Se isto está claro para todos nós — não estou dando explicações, vocês o estão descobrindo por si mesmos —, então, que lugar ocupa o conhecimento na relação? Por favor, esta questão é muito séria, não é só uma proposição casual, argumentativa. Esta é uma investigação acerca de que lugar ocupam o conhecimento, a experiência, as recordações acumuladas, na relação. Tenham a bondade de responder a isto vocês mesmos, não olhem para mim. Se você diz: “Conheço a minha esposa — ou outra forma de relação intima —, já colocou esta pessoa dentro da estrutura de seu conhecimento acerca dela. Por conseguinte, esse conhecimento se torna o processo divisor. Você tem vivido com sua esposa, sua noiva ou o que for, e tem acumulado informação. Tem recordado as penosas declarações que ela tenha feito ou que você as fez; existe todo esse desenvolvimento da memória que dá forma a uma imagem, a qual interfere na relação com a outra pessoa. Correto? Por favor, observem isto em si mesmos. E ela está fazendo exatamente a mesma coisa. Nos perguntamos, pois: Que lugar ocupa o conhecimento na relação? O conhecimento é amor? Posso conhecer a minha esposa: sua aparência, o modo como se comporta, certos hábitos que possui, etc. Isso é bastante óbvio. Porém, por que devo dizer “conheço”? Quando digo que a conheço já limitei minha relação. Não sei se o compreendem. Já criei um bloqueio, uma barreira entre nós dois. Significa isso que em minha relação com ela me torno irresponsável? Compreendem minha pergunta? Se digo: “Basicamente, não conheço você”, sou irresponsável? Ou me torno extraordinariamente sensitivo — se é que posso usar essa palavra; é uma palavra errônea —, sou vulnerável, não tenho sentido algum de divisão, não tenho barreiras?

Portanto, se possuo esta qualidade de mente, de cérebro, se sinto que a relação é um florescer, um movimento — não é algo estático, é uma coisa viva, você não pode coloca-la em uma cesta e dizer “é isso” e não mover-se daí —, então, posso começar a perguntar-me: O que é o casamento? De acordo? O não casamento; você pode viver com outra pessoa, sexualmente, podem viver como companheiros, de mãos dadas, conversar e ir a um Registro Civil ou passar por uma cerimônia católica ou protestante e ser amarrados ali; ou podem viver sem estarem casados. Em um caso, você toma um voto de responsabilidade; no outro, não. Num estou legalmente casado e a separação ou o divórcio se torna bem mais difícil; no outro é bastante simples, ambos dizemos adeus e partimos em direções diferentes. E isso é o que está ocorrendo cada vez mais no mundo. Não condenamos nem a um nem ao outro. Por favor, só estamos considerando todo este problema: a responsabilidade e o sentimento de tremenda carga que representam os filhos. E aí vocês estão atados legalmente. No outro caso não, podem ter filhos, porém a porta está aberta sempre. Bem, agora, em ambos os casos, toda relação entre duas pessoas é uma mera forma de atração, de respostas biológicas por ambas as partes, curiosidade, o sentimento de querer estar com outro, o qual pode ser o resultado do inconsciente medo da solidão, um hábito estabelecido pela tradição? Em ambos os casos, se converteu num hábito e em ambos os casos há medo da perda, há a possessão, mutua exploração sexual e todas as sequelas disso. Bem, agora, o que é importante em todos os casos? Por favor, estamos considerando isto juntos; não estou lhes dizendo o que é e o que não é importante. O que é importante, indispensável em ambos os casos? A responsabilidade é essencial, não é verdade? Sou responsável pelas pessoas com quem vivo. Sou responsável, não só com respeito a minha esposa, senão que sou responsável pelo que está ocorrendo no mundo. Sou responsável de ver que não se matem as pessoas. Sou responsável. Responsável de ver que não haja violência. Estão de acordo?

Limita-se, pois, minha responsabilidade a uma pessoa, a minha família, a meus filhos, como o tem sido estabelecido pela tradição? No Ocidente, a família está desaparecendo mais e mais, enquanto que no Oriente a família segue sendo o centro. Esta é tremendamente importante; pela família farão qualquer coisa, ainda que sejam primos longínquos se manterão unidos, se ajudarão uns aos outros usando toda classe de influências. Porém, aqui, pouco a pouco isso está desaparecendo por completo.

Vejam senhores, à medida que vocês o investigam, este problema torna-se extraordinariamente complexo e vital. Se tenho filhos, se os amo realmente e me sinto responsável, o sou durante toda a vida deles, e eles devem sentir-se responsáveis por mim durante toda a sua vida. Devo ver que sejam devidamente educados, que não se lhes ensinem a causa de uma guerra.

Assim, pois, esta questão implica tudo isto. Investigando-a profundamente, você vê que, a menos que tenha esta qualidade do amor, tudo carece por completo de significação. E, se estou tentando não ser egoísta, não estar isolado, ter este sentimento de profundo afeto no qual não há apego e nem posse nem perseguição do prazer, e minha esposa sente o contrário, então, temos um problema completamente diferente. Compreendem isto? Então, o problema é: Que farei? Simplesmente abandoná-la, fugir, divorciar-me? Posso ter que faze-lo se ela insiste. Não é uma pergunta que possa ser respondida mediante umas tantas declarações, senão que requer muitíssima investigação interna nisto por ambas as partes. E, se nessa investigação, se nessa exploração não há amor, então, não há uma ação inteligente. Onde há amor, este tem sua própria inteligência, sua própria responsabilidade.

Krishnamurti – Brockwood Park, Inglaterra, 2 de setembro de 1982

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Posso olhar o mapa do medo sem uma onda de pensamento?


Existe o medo. O medo nunca é uma realidade: vem sempre antes ou depois do presente ativo. Quando há medo no presente ativo, isso será medo? Está ali e não há como fugir dele, não há como escapar. Ali, no momento presente, há a atenção total, mas não há medo. Mas o próprio fato da desatenção gera o medo; o medo surge quando há uma evitação do fato, uma fuga; então a fuga é, ela própria, o medo. (1) Diário de Krishnamurti

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Krishnamurti: Se sou um homem sério, quero saber a razão da existência de tantos medos, conscientes ou inconscientes. Eu me pergunto o porque de existir o medo e qual seu agente principal. Tentarei mostrar como investigar isso. Minha mente diz: Eu sei que tenho medo — tenho medo da água, da escuridão; tenho medo de determinada pessoa; tenho medo de ser descoberto, já que contei uma mentira; eu quero ser grande, bonito e não sou — então, tenho medo. Estou investigando. Tenho, pois, inúmeros medos. Sei que existem medos profundos, que nem sequer olhei e que existem medos superficiais. Quero agora descobrir algo a respeito de ambos, tanto dos ocultos quanto dos visíveis. Quero saber como eles existem, como eles surgem, qual é a sua raiz.

Mas, como poderei descobrir? Farei isso passo a passo. Como descobrir? Só poderei descobrir se a mente perceber que viver com medo é não apenas neurótico mas muito pernicioso mesmo. A mente primeiro precisa perceber que é neurótica e que, portanto, a atividade neurótica prosseguirá e se tornará destrutiva. E verificar que a mente atemorizada não é jamais honesta, que a mente assustada, inventará qualquer experiência, qualquer coisa a que se apegar. Eu preciso, então, de início, enxergar com clareza e na totalidade que, enquanto houver medo, haverá desgraças.

Mas, eu pergunto, vocês percebem isso? Esse é o primeiro requisito. Essa é a primeira verdade: enquanto existir medo existirá o escuro, e o que quer que eu faça nesse escuro será escuridão, será confusão. Será que eu percebo isso com nitidez, na sua totalidade e não apenas de modo parcial?

Questionador: A pessoa aceita isso.

Krishnamurti: Não existe aceitação, senhor. O senhor aceita que vive na escuridão? Está bem, aceite e viva com isso. Para onde quer que vá estará carregando consigo a escuridão e, então, viva na escuridão. Fique satisfeito com ela.

Q: Há um estado mais elevado.

K: Um estado mais elevado de escuridão?

Q: da escuridão para a luz.

K: Veja, de novo, a contradição. Da escuridão para a luz é uma contradição. Não, senhor, por favor. Eu pretendo investigar e o senhor tenta impedir que eu faça isso.

Q: É análise.

K: Não é através de análise. Por favor, senhor, ouça o que tem a dizer esse pobre homem. Ele diz, eu sei, estou a par, eu tenho consciência de ter inúmeros medos, ocultos e superficiais, físicos e psicológicos. E sei também que, enquanto eu viver, nessa área haverá confusão. E, faça eu o que fizer, não poderei clarear essa confusão até que me liberte do medo. Isso é óbvio. Isso agora ficou claro. Então eu digo a mim mesmo: eu vejo a verdade de que, enquanto houver medo, eu viverei na escuridão — posso chama-la de luz, acreditar que irei ultrapassá-la, mas eu ainda carrego esse medo.

Vamos agora para o passo seguinte, e não se trata de análise; é apenas observação: — será a mente capaz de examinar? Será a minha mente capaz de fazer um exame, de observação? Vamos ater-nos à observação. Compreendendo que, enquanto existir o medo, haverá escuridão, será a minha mente capaz de observar o que é o medo e a profundidade desse medo? Agora, o que significa observar? Serei capaz de observar todo o movimento do medo ou apenas parte dele? É a mente capaz de observar por completo a natureza, a estrutura, o funcionamento e o movimento do medo, no todo, e não apenas pedaços dele? Quando digo no todo, quero dizer não pretender superar o medo, porque nesse caso eu teria uma direção, um motivo. Quando existe um motivo, existe uma direção e, então, não há como enxergar o todo. E não existe um modo de observar o todo se existe algum tipo de desejo de superar ou de racionalizar.

Poderei observar sem nenhum movimento do pensamento? Ouçam isto. Se eu observar o medo através do movimento do pensamento, isso é parcial, é obscuro, não é claro. Posso então observar o medo, todo ele, sem o movimento do pensamento? Não se apresse. Estamos apenas observando. Não estamos analisando, estamos apenas observando o mapa do medo, um mapa de extraordinária complexidade. Se você tiver uma direção quando olhar para o mapa do medo, você estará olhando para ele de modo parcial. Isso é claro. Quando você quer superar o medo, você não olha o mapa. Então, será que você é capaz de olhar o mapa do medo sem nenhum movimento do pensamento? Não responda logo, vá com calma.

Em outras palavras, pode o pensamento cessar quando eu estou observando? Quando a mente observa, pode o pensamento ficar em silêncio? Você então me perguntará como proceder para que o pensamento fique em silêncio. Certo? Essa pergunta é equivocada. Minha intenção agora é observar e essa observação fica impedida quando existe um movimento ou tremular do pensamento, alguma ondulação do pensamento. Assim, minha atenção — ouçam isto — dedicarei a minha atenção total ao mapa e, portanto, o pensamento não pode entrar. Quando olho para você de modo completo, nada existe do lado de fora. Compreende?

Posso então olhar o mapa do medo sem uma onda de pensamento?

Krishnamurti – Saanen, 31 de julho de 1974

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